é domingo. um domingo quente, quer dizer, agora está quente. as nuvens que amanheceram o dia deram espaço ao céu azul e ao sol de meio dia. a rua abriga uma obra gigantesca, que ocupa sete andares abaixo da rua: desse parto nascerá um futuro shopping center. seu processo de construção faz do presente um algo sempre movimentado e barulhento, incluindo nas madrugadas, quando caminhões dão rés sem fim, toneladas de concreto são derramadas e pedras são despejadas reproduzindo a trilha sonora de um terremoto. ou de um pesadelo. mas é domingo e felizmente a rua hoje está calma. carros passam, pessoas passeiam, nenhum barulho irritante se faz ouvir.
e então, alguns gritos. da sala de um apartamento lá do alto não dá mesmo pra entender. ouvem-se, mas não se entendem bem as palavras. uma coisa entende-se, no entanto: não são gritos amigáveis ou brincalhões. ouve-se o pânico, apesar de não se ouvirem as palavras. e então buzinas. muitas buzinas. gritos entrecortados. da janela, vê-se: primeiro um moço grita muito com um motorista de taxi. ele parou o taxi na pista da esquerda, no recuo da obra, e desceu do carro. os dois estão na quina do carro, perto da rua, o moço que gritava antes agora grita grita grita muito com o taxista. ouve-se apenas a sua voz de homem fora de si, voz gritada, arranhada, nervosa. o passante gritando com o taxista: “vai se meter, é? de onde tirou isso de agora se meter?”. lá do alto não se ouvem respostas do taxista, mas se ouvem as respostas do carro, que continuam a buzinar buzinar buzinar. enquanto isso, uma mulher corre. ela olha pra trás entre um sprint e outro, pára e olha por cima do ombro para o moço que está a gritar com o taxista e que mantém um olho nela e outro no intrometido. ela já está na ponta do quarteirão e cada parada para olhar para trás parece demorar mais do que deveria. graças ao espirito turrão do moço, nervoso por demais com o taxista que parou pra se meter na briga dos dois, ela já dobrou a esquina e seus cabelos, depois de saltitarem ao fundo dos tapumes da obra, já são invisíveis.
a moça continua sua fuga. o moço retoma a corrida atrás da moça. muito bravo, larga o taxista pra trás. os carros retomam suas rotas. o taxista entra em seu carro e retoma sua jornada. os gritos passaram por aquele espaço-tempo. as pessoas passaram. os carros passaram.
a rua observa, aridamente, seus passageiros. gritos, ruídos, pessoas, máquinas. são todos passageiros daquele espaço-tempo.
não se sabe porque ele corre atrás dela, não se sabe porque ela grita nem porque ela foge. não se sabe se ela tem pra onde fugir ou se foge só do seu medo imediato. não se sabe nem aonde chegaram depois de tanta corrida. não se sabe se os motoristas buzinadores o fazem para assustar o moço que grita ou para apoiar a moça que foge e o homem que dirige um táxi e se solidariza com os passantes. de todos, ele é o mais acostumado ao fato de que somos todos passageiros.